domingo, 23 de setembro de 2012

QUANDO O AMOR É UMA DOENÇA


Revista Época - Martha Mendonça

"Quando meu amante não me quis mais, senti mais dor do que na morte da minha mãe. Logo minha mãe, que foi tão boa pra mim. Ele foi mau. Me fez  sentir a mulher mais maravilhosa do mundo, depois deixou de me amar. Eu o persegui, xinguei e agredi. Minha vida se tornou ingovernável.”

O relato de Tânia, carioca, 41 anos, é interrompido pelas lágrimas inúmeras vezes. Professora, casada e mãe de um adolescente, ela se tornou viciada – no jogo e no amor. O alcoolismo do marido e a independência do filho crescido a jogaram num vazio. Há cinco anos, nas tardes livres, começou a frequentar um bingo. Era apenas um passatempo. Até que ela conheceu Paulo, solteiro e mais jovem do que ela. Em uma semana, estavam apaixonados. Uma nova rotina se fez: eles passavam as tardes apostando – quase sempre com o dinheiro dela – e, antes que ela voltasse para a família, passavam algumas horas no apartamento dele, ali perto.
“Era muita adrenalina. Da roleta à cama dele, eu me sentia numa aventura, num filme. Depois de um mês, ele disse que queria ser meu noivo. Sabia muito bem que eu era casada, mas ali no bingo, a gente vivia um mundo paralelo. Ele fez o anúncio na frente de todo o pessoal que jogava e me deu um anel, ajoelhado no chão. Eu nunca me senti tão poderosa”.
Depois de um ano, tudo começou a mudar. Paulo sumia várias tardes. Dizia que havia conseguido um trabalho, que não queria mais ser sustentado pelos pais. Tânia passou a persegui-lo. Durante dias seguidos, passava horas no estacionamento onde ele guardava o carro, para ver se ele chegava com alguém. Sua vida era saber de todos os seus passos. Subornou um porteiro. Tentou contratar um amigo para segui-lo. No bingo, quando Paulo aparecia, ela não permitia que ele conversasse com nenhuma outra mulher. Tiveram brigas públicas. Ela já não ligava para o olhar dos outros. Passaram a se agredir fisicamente.
“Eu não ligava pro meu filho, minha casa, nada. Eu vivia em função dele. Um dia, ele disse que não queria mais, que eu levava a vida dele para o fundo do poço. Falou que eu era louca. Foi pouco antes de um Natal. Na ceia, com meu marido, meu filho e o resto da família, chorei sem parar. Ninguém sabia o que eu tinha. A quem perguntava, eu dizia que estava deprimida.”
No dia seguinte, Tânia foi à casa de Paulo. A mãe atendeu a porta e ela invadiu. Começou a gritar e quebrar tudo pela frente. Agrediu o ex-namorado com socos e pontapés. Chamaram dois porteiros para tirá-la de lá. Mas ela não parou. Continuou seguindo o ex-namorado. Contentava-se em vê-lo passar na rua. Teve distúrbios de ansiedade, insônia, desmaios. A família nunca soube o motivo. Hoje, ela tem apoio psiquiátrico e participa de um grupo de apoio. Ainda pensa no ex – e sofre –, mas tem conseguido se controlar.
“Até quando, não sei. Mas esse amor ainda dói muito.”
O que Tânia chama de amor pode ser, na verdade, uma doença. Dentro das classificações psiquiátricas, ela se insere nos chamados Transtornos Impulsivos do Comportamento – junto com o vício no jogo, nas compras, na comida. Nos meios médicos, é chamado de Amor Patológico – e tem sido cada vez mais reconhecido como doença.
No Rio, a Santa Casa, referência em Psiquiatria, iniciou este ano o tratamento específico deste tipo de transtorno. Doze pacientes começaram a ter sessões individuais e trabalhos em grupo. Há cinco anos, um núcleo da Universidade de São Paulo (USP) também mantém um ambulatório especializado, além de estudar o Amor Patológico.  “A ideia dessa dependência afetiva é bastante nova. Esse reconhecimento é muito importante, porque é algo que causa enorme sofrimento a muitas pessoas”, diz a psiquiatra Analice Gigliotti, chefe do Setor de Dependência Química e Outros Transtornos do Impulso da Santa Casa.
O Amor Patológico ainda não é, oficialmente, uma doença mental. As dependências comportamentais estão entrando, progressivamente, no Manual de Estatística e Diagnóstico das Doenças Mentais, a DSM. Trata-se da bíblia dos transtornos mentais, reelaborada periodicamente pela Associação Americana de Psiquiatria. Na próxima edição, que sairá ainda este ano, a compulsão por jogos será registrada. “Aos poucos, a coleção de registros e a existência de um padrão farão com que os transtornos sejam incluídos no Manual”, diz Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria.
Desde a década de 80, a psicologia e medicina estão percebendo que, da mesma forma que há dependências químicas, de substâncias, há a dependência de determinados comportamentos. A novidade é a medicalização do transtorno. O reconhecimento do problema – que tem um padrão, daí ganhar um tratamento específico – é o primeiro passo para o processo de controle de atitudes que podem prejudicar vidas.
No fundo de tudo, a busca do prazer. O vício não é no jogo, na droga ou na pessoa – é no prazer. A explicação é neuroquímica: a paixão, como a droga, libera a dopamina no cérebro. É essa substância que causa a sensação de prazer, de conforto, de felicidade e bem-estar. Depois de experimentá-la, como viver sem ela? No caso do Amor Patológico, essa sensação é personificada. Como viver sem aquele alguém ou com a ideia de que ele não nos ama como gostaríamos?
Quem sofre do Amor Patológico não consegue ter um relacionamento amoroso saudável. Seu foco obsessivo é o parceiro, a relação. Aceita um relacionamento destrutivo, tolera humilhações. Sofre com a falta de atenção do ser amado – real ou imaginária. Reage de forma desesperada à rejeição. Tem necessidade de controle do outro – mesmo quando este já virou ex. Às vezes por toda a vida.
“Todas as noites, quando chegava em casa, eu passava a mão na parte de cima do armário para ter certeza de que a arma estava lá. Só quando meus dedos encontravam aquele objeto frio, eu me dava por satisfeita. Então eu tomava banho, jantava e me deitava para voltar a pensar em um jeito de matar o meu ex-marido. Até hoje eu nunca soube se teria mesmo coragem de fazer isso. Mas durante muito tempo, eu tinha certeza que sim.”
A funcionária pública mineira Neuza, 53 anos, casou-se aos 18. Era virgem e não tinha terminado seus estudos. Com poucos meses de união, descobriu que era traída. Não fez nada. Soube mais duas, três, quatro vezes – sempre com mulheres diferentes, que às vezes até ligavam para sua casa. Apaixonada – ela repete -, nunca reclamou.
Ao longo dos anos, na rotina do casal, ela ficava em casa com os filhos pequenos e ele ia à vida. Um dia, César, seu marido, comprou um carro novo, conversível. Era seu sonho de consumo. Neuza imaginou que ele levaria a família para um passeio, no primeiro sábado. Mas ele disse que sairia sem eles – porque tinha companhia melhor. Ela arranhou todo o seu carro. E ganhou um olho roxo – mas não o abandonou.
“Eu era tão apaixonada que tinha certeza de que ele ia mudar. Meu amor não poderia ser em vão. Quanto mais ele me destratava, mais eu era louca por ele. Criei uma rede de informantes – na vizinhança, no trabalho dele, no clube onde eu sabia que ele ia – para controlar tudo que ele fazia. Sabia das mentiras, das amantes, me jogava na cama e chorava, chorava. Mas não pensava em ir embora. Na verdade, saber de tudo sobre ele me dava certa sensação de poder, mesmo que ele me traísse.”
Neuza não pensava em separação, mas um dia ela chegou – pelas mãos do marido. Estava envolvido com a secretária de sua empresa. Neuza voltou para a casa dos pais depois de dez anos. Mas o marido, agora ex, continuou sendo o foco de sua vida. Soube das viagens ao exterior que ele fez com a nova mulher e do apartamento novo para onde se mudaram. Fez questão de ir até lá, para xingá-los na porta do edifício. Tomava remédios para dormir, não se alimentava. No emprego, que arrumara para ajudar os pais, passou mal inúmeras vezes.
“Era muito estresse, tristeza, revolta. O único jeito de eu voltar a viver era ele não existir mais. Então eu achei que só seria feliz se ele morresse. Foi aí que comprei a arma, ajudada por uma vizinha que tinha um irmão policial. Passei a pensar uma estratégia. Era melhor na saída do prédio ou do trabalho? Era melhor eu mesma ou alguém contratado? No meu íntimo, eu queria que ele me visse apertando o gatilho. Ele tinha que saber que era eu. Mas o plano ficava só na minha cabeça.”
Deprimida, Neuza começou a beber. Sofreu um acidente de carro, perdeu o fígado. Passou a sentir fraquezas, desmaiou na rua várias vezes. Foram anos assim, sempre doente, entocada em casa, sem amigos, sem diversão. E continuou seu plano de morte – que jamais compartilhou com alguém da família.
Um dia, o filho, já adulto, descobriu a arma. Quis saber o motivo. Neuza virou bicho. Era como se seu mundo estivesse sendo invadido. Agrediu o filho. Só neste momento veio a ideia de que ela precisava de ajuda psicológica urgente. Foi quando ela viu, num jornal, uma pequena matéria sobre o Grupo Mada – Mulheres que Amam Demais Anônimas.
“Quando li os relatos, parecia que falavam de mim, dos meus sentimentos das minhas dores. Só a ideia de que eu não estava sozinha já me ajudou. Participo das reuniões há oito anos. Esqueci o meu ex-marido. Mas arrumei um novo namorado e – adivinha – tive o mesmo tipo de problema: paixão, rejeição, descontrole. Acho que vou ter que me tratar a vida inteira.”
Todas as semanas, 45 grupos espalhados em 14 capitais brasileiras – além de um em Portugal e três na Venezuela – falam do Amor Patológico, suas dores e ações em nome dele cometidas. Surgido há cerca de dez anos, o Mada espalhou-se pelo país rapidamente, com o mesmo conceito dos Alcoólicos Anônimos: auto-ajuda, discussão, acolhimento e a certeza de que ninguém nunca se cura de uma compulsão – ela é apenas controlada, um dia após o outro.
Somos uma irmandade, repetem as mulheres que frequentam as reuniões. Começam sempre com uma prece. A ideia de uma força maior é primordial para a superação. Depois falam de seus problemas, relatam os últimos dias. Opinam nas histórias umas das outras.
“O Mada faz um trabalho fantástico, cotidiano. Mas é importante, na maioria dos casos, que haja também um tratamento psicológico ou psiquiátrico”, afirma Eglacy Sophia, supervisora do setor de Amor Patológico do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Hoje eles atendem 25 pessoas. Uma das referências do Mada é o SLAA – Sex and Love Addicts Anonymous (Viciados em Amor e Sexo Anônimos). Já são 113 grupos espalhados pelos Estados Unidos.
Como no Brasil, além dos grupos de auto-ajuda, também se multiplicam os centros de atendimento médico para o Amor Patológico. No Tennessee, um centro existente há 20 anos, The Ranch, referência no tratamento de álcool de drogas, criou, há dois anos, um espaço especial para tratamento da área de relacionamentos afetivos, já com dois grupos anuais de 20 pessoas, entre homens e mulheres. Em Los Angeles, o Center of Healthy Sex já tem 50 pacientes de Amor Patológico, com apoio de psicólogos e psiquiatras.
Segundo Eglacy, a maior parte das pessoas que busca ajuda é do sexo feminino – não à toa o Mada cresceu apenas com mulheres. Mas será que elas sofrem mais com o Amor Patológico? “É da natureza feminina buscar mais ajuda e mulheres têm mais facilidade para expor seus problemas”, diz.
Analice Gigliotti, da Santa Casa, acredita que mulheres são maioria porque, por uma questão cultural, sempre deram mais importância aos relacionamentos afetivos. “Se a pessoa tem aquele aspecto da vida como prioritário para sua felicidade, e se ele não vai bem, a vida toda está ruim”, diz. Mas isso não quer dizer que homens não desenvolvam este tipo de transtorno – e com grande sofrimento.

“Falar sobre isso é quase tão dolorido quanto a própria dor. Só estou me tratando porque não conseguiria lidar com a perda da minha mulher. Preciso aprender a controlar meus pensamentos e a perceber que nem tudo que eu imagino é real. Depois que eu dou meus ataques e a raiva passa, tenho muita vergonha. Minha autoestima está no fundo do poço e ninguém vai me amar desse jeito.”
O administrador de empresas paulistano Walter, 33 anos, está casado há quatro. Admite que sempre foi “dependente” de suas namoradas. Não aceitava que a atenção integral de início de namoro diminuísse com o tempo. Rapidamente se sentia rejeitado. Se telefonava e elas não podiam falar, ia até onde elas estavam, tirava satisfações, dava vexame. Achou que, com o casamento, isso diminuiria. Mas o compromisso, em vez de aliviar seus estresse, só o aumentou. O dia-a-dia a dois aumentou as cobranças – e as brigas, cada vez mais violentas.
“Ela sai de casa e eu começo a pensar uma coisa ruim, que ela está me traindo ou fazendo alguma coisa sem que eu saiba. Daí em diante não consigo mais me controlar nem me concentrar em qualquer outra coisa. Quem me olha, pensa que estou calmo, trabalhando, mas, por dentro, tem um monstro em ação.”
Há um ano, numa briga – depois que o celular da mulher estava sem bateria e ele não conseguiu falar com ela – Walter a agrediu. A mulher foi para a casa da irmã. Só voltou depois de uma semana, após a promessa do marido de frequentar um psicólogo. Foi lá que Walter ouviu falar, pela primeira vez, que sofria de amor patológico. E que, muitas vezes, esta não é uma doença de um ator só – mas uma via de mão dupla. Admitir tudo isso é  tão difícil para ele, e o medo de partilhar, tão arraigado, que Walter só concordou em dar entrevista por telefone e se recusou a tirar foto, mesmo sem identificação.
“A psicóloga me fez perceber que muito do que minha mulher fazia estimulava o meu transtorno, a minha necessidade de controle, de perseguição. Ela sabia que ela era mais poderosa quando me ignorava um pouco, fazia doce ou não atendia meus telefonemas. Ela deixava eu crescer na minha raiva e explodir. Depois eu ficava mal, ela grande e eu pequeno, fraco, por tudo que eu tinha feito. No meu tratamento, estou tentando colocar o centro da minha vida em mim mesmo. Não é fácil, porque eu sou inseguro e tenho medo de ficar sozinho. Mas quero conseguir. Só assim vou poder ter um amor saudável um dia.”
Autora de best-sellers como Mentes inquietas e Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado, a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa prepara um livro sobre a Personalidade Borderline. Ainda pouco conhecido, este tipo de transtorno é caracterizado pela ausência de ligação com a realidade e a dificuldade de conexão real com o outro. Não chegam a ser psicopatas – que não têm empatia com o outro -, mas têm mais do que uma neurose, além de uma alta tendência à impulsividade. E é justamente nas relações afetivas que os problemas aparecem. “O Amor Patológico é totalmente ligado à Personalidade Borderline. São pessoas com senso de identidade quase nulo, daí precisarem de outros para dar validade a elas. Elas não amam alguém, elas  na verdade precisam de quem construa um lugar no mundo para elas”, diz. Quando rejeitada ou temerosa de perder esse alguém, elas enlouquecem. Porque é como perder a própria vida.
O Amor Patológico, afirma Ana Beatriz, necessita de parceria: para cada border, há alguém com outro transtorno, mesmo que leve. Há casos em que, do outro lado, está um obsessivo compulsivo, que jamais rompe o vínculo pela obstinação em corrigir a situação. Na maior parte das vezes, porém, o par da Personalidade Border é o narcisista – ou mesmo o psicopata. O “amor louco”do outro enaltece a vaidade do narcisista, vira sua forma de ter segurança e viver. No caso do psicopata, sua falta de empatia faz com que ele trate a situação com frieza, isso quando não se diverte e tem prazer. “São esses pares complementares que geram os casais tão improváveis que muitas vezes conhecemos e nos fazem pensar: como é que isso funciona?”, diz.

“Quando me sinto rejeitada, é como se eu sofresse um apagão. Não sei quem eu sou, nem o que é realidade. Bato, destruo, machuco. Sinto um vazio no peito, uma dor, que parece que eu vou morrer de um ataque do coração. Depois, muitas vezes, percebo que foi um sentimento por algo que não era de verdade, mas inventado pela minha cabeça. O problema é que depois eu faço tudo de novo.”
A cruzada de pernas de Kátia não passaria despercebida por nenhum homem. Professora de Educação Física, moradora do Niterói, Estado do Rio, ela gosta de usar roupas curtas, justas, decotadas, que mostram sua ótima forma aos 35 anos. Casou-se aos 25 com um colega de faculdade. O casamento ficou morno e, depois de sete anos, decidiram, de comum acordo, pela separação. Seis meses depois, ela começou a sair com um homem trinta anos mais velho e de uma classe social inferior.
“Ele era chefe da oficina mecânica onde eu costumava levar meu carro. Durante anos, sempre foi amável e brincalhão. Eu estava sozinha e ele me chamou pra sair. Fui. E me apaixonei. Eu sei que as pessoas nos olhavam na rua e pensavam como é que eu estava com um cara como aquele: mais velho, magro, feio e mais baixo do que eu. Mas ele me agradava, tinha um jeito quietinho, doce, que me conquistou. Vivi meses de lua-de-mel. Até que um dia ele começou a me rejeitar. Eu ligava e ele estava sempre ocupado. Eu marcava de sair e, na última hora, ele dava uma desculpa.”
Kátia deixou o bronzeado de lado. De manhã, antes do trabalho, em vez de pegar a praia de costume, ficava em seu carro, na rua da oficina, observando o namorado. Ele raramente saía de lá. Dali mesmo ela telefonava para ele. Se, na terceira tentativa, ele não atendesse, ela já invadia o local aos berros. Virou a atração da oficina mecânica. No começo, era alvo de risadas: um mulherão armando o barraco dia sim, dia não, era uma bela quebra na rotina. Mas, depois que destruiu dois cones da entrada, atropelados por seu carro, passou a ser temida no trabalho do namorado.
“Todos os dias, eu pensava: como é que esse cara não está nem aí pra mim? Ele devia dar graças a Deus por ter uma mulher como eu! Mas era uma falsa autoestima. Se eu me achasse realmente maravilhosa, não daria tanto vexame, não desceria tão baixo. Só que eu não conseguia mais ficar sem ele. Era uma adrenalina quando ele não me atendia. Eu queria quebrar tudo, sofria e chorava. Faltava ao trabalho toda hora.”
Kátia descobriu que o namorado não a atendia quando estava no trabalho porque era lá que ele a traía – com a moça do cafezinho. A informação foi passada por um outro mecânico, com quem ela fez amizade. Foi à oficina e espancou o namorado com sua bolsa, que tinha pedaços de metal. O homem, ferido, deu queixa na polícia. Dias depois, Kátia foi intimada a comparecer a uma delegacia.
“Ainda me lembro da cara da escrivã, me olhando. A dúvida estava no rosto dela: como é que essa mulher jovem e bonita fez isso? Eu me senti humilhada. Chorei dias seguidos. Decidi que nunca mais ia procurá-lo, mas não conseguia me desprender dele. Continuei sabendo tudo sobre ele através do mecânico que tinha ficado meu amigo – e a quem de vez em quando eu dava uns trocados. Cheguei a ligar várias vezes pro meu ex, de orelhão, só pra ouvir a voz dele. No meu sonho, ele adivinhava que era eu e dizia que me amava e que queria voltar. Eu queria a minha vida de volta, mas não conseguia.”
Há dois anos, aconselhada por uma amiga, Kátia procurou o Mada. Depois que começou, nunca largou o grupo. Estimulada pelas conversas, começou a ler sobre Psicologia e Amor Patológico. Descobriu que, com o namorado, repetia os mesmos padrões de namoros anteriores – necessidade de controle e atenção, pavor de ser rejeitada, impulsividade.
“Talvez meu ex-marido tenha sido a exceção justamente porque sempre foi dedicado e atencioso. Com ele, eu não sentia ciúmes, não tinha medo da perda. Ele me dava mais atenção do que eu a ele. Talvez nós, mulheres que amam demais, sejamos assim: as pessoas que nos amam de verdade não têm muita graça. Será que somos atraídas pela rejeição que tanto tememos?”
Coordenadora dos grupos de Amor Patológico da Santa Casa, a psicóloga Daniela Faertes fez a triagem dos inscritos e se impressionou com o número de interessados: mais de cem em apenas dois meses. Uma em cada quatro pessoas, no entanto, estava bem longe de sofrer do transtorno. “Sofrer por causa de um término de relacionamento não é doença. Ao contrário, é mais do que normal. O transtorno começa a partir do que se faz com esta dor, as ações, as reações, o padrão repetitivo”, afirma.
Recentemente, a Associação Americana de Psiquiatria, que tem sido a referência mundial na área, tem recebido críticas de que, ao incluir novas doenças em seu Manual, estaria forçando a medicalização de atitudes que não são doenças mentais, reduzindo a “normalidade”. Há um consenso, porém, de que a linha divisória entre o saudável e o normal está no dia-a-dia. Quando um transtorno ou uma mania começam a prejudicar a vida, começa aí a patologia. Ser ansioso é normal; ter crise de ansiedade a ponto de não conseguir sair de casa é doença. Gostar de limpeza é normal; lavar as mãos a cada cinco minutos é doença e se desesperar quando não há água por perto é outra. Apaixonar-se é saudável; acreditar que sem aquela pessoa o mundo acabou é Amor Patológico.
Um dos perigos dos transtornos de comportamento é o acúmulo ou a rotatividade de tipos de dependência. Para se afastar da bebida, vai-se ao jogo. Para afastar-se do jogo, vai-se à ao exagero alimentar. Para curar da comida, toma-se anfetamina. Tudo para preencher o vazio.

“Passei a vida me sabotando. Fui maltratada por todos os homens com quem me relacionei. Mas a culpa foi minha, que aguentava. Talvez eu até já procurasse quem tivesse essas atitudes. Não é possível ser coincidência. E, mesmo humilhada, eu sempre vivi a vida deles, nunca a minha.”
A carioca Mara, 39 anos, arquiteta, apaixonou-se “perdidamente” aos 15 anos. O relacionamento era sua prioridade, acima dos estudos, das amigas, da família, de seus próprios gostos. Quando ele foi para a faculdade e ela continuou no ensino médio, gostava de segui-lo de manhã cedo pelas ruas, quando ele saía de casa para pegar o ônibus. Um dia, ele terminou o namoro. Mara não se conformou. Telefonava chorando todos os dias, fazia chantagens emocionais. Ameaçava se matar. Terminaram e voltaram inúmeras vezes.
“Uma vez, ele disse que o fim era definitivo e eu tomei o vidro de Gardenal da minha mãe. A quantidade não foi suficiente para me matar – mas o susto fez ele voltar pra mim. Cada vez que a gente reatava, ele me tratava pior. Dizia que eu era burra e feia. E eu não me importava, só me interessava que ele ainda fosse meu namorado. Como se não bastasse, eu ainda comecei a fazer um enxoval para casar.”
Quando Mara tinha 24 anos, o namoro chegou mesmo ao fim. O namorado, sua obsessão, tinha uma noiva e estava de passagem marcada para São Paulo, onde a moça morava. Passou meses sem sair de casa, largou o trabalho numa loja e seu único passatempo era descobrir a melhor forma de se matar. Metrô, ponte, remédios? Só parou quando um rapaz amigo dos vizinhos pulou os obstáculos que ela construíra em torno de si mesma.
“Ele forçou a barra, aguentou minhas negativas, insistiu. Era engraçado e atencioso. No fim de alguns meses, desisti de um curso no Canadá, larguei o emprego e casei com ele. Tivemos um filho. Mas, em poucos anos, a lua-de-mel acabou. Não sei se ele cansou de mim, mas passou a me tratar mal, chegava bêbado em casa, não me dava bola. E eu só queria aquele homem. Não tinha amigos, não olhava pro lado. Acho que nem me olhava no espelho. Engordei muito.”
Aconselhada por uma vizinha que tinha feito uma dieta-relâmpago, Mara começou a tomar anfetaminas. Emagreceu vinte quilos. Mas, depois de um tempo, as crises de ansiedade começaram. Ela parou os remédios e começou a ganhar peso novamente.Voltou às anfetaminas – e se tornou dependente da euforia causada por elas. Há cerca de seis anos, teve síndrome de pânico. Não conseguia mais sair à rua. Foi abandonada pelo marido. Hoje, faz psicoterapia e frequenta o Mada.
“Eu digo que estou em recuperação, mas esta semana mesmo tive uma recaída. Estou com um namorado novo e, mais uma vez, esqueço de mim para pensar apenas nele. Não há um só minuto do dia que eu não esteja imaginando o que ele está fazendo, se está me traindo, se vai me telefonar, se está pensando em me deixar. Eu tenho me esforçado para fazer algo por mim, pelo meu prazer. Acho que vou comprar um cachorro, que é algo que sempre quis, mas nunca tive oportunidade. Se eu descobrir que me amo, vou conseguir largar esse relacionamento que me faz tão mal. Não posso mais viver assim.”

Transtornos psiquiátricos nascem em um traço genético. Mas o nível que patologia vai alcançar depende da cultura e da educação. “As pessoas já vêm em um determinado formato de como viver a vida. Mas a família, a escola, os amigos, o meio vão favorecer ou suavizar aquela tendência”, diz Ana Beatriz Barbosa. A harmonia familiar na infância, assim como a atenção dos pais, podem dar a segurança necessária a quem nasceu com o traço de transtornos do impulso como o Amor Patológico, criando um escudo de autoestima de importância vital. Da mesma forma, a ausência do amor paternal no começo da vida, quando se forma a identidade, pode transformar um traço brando em transtorno grave.

Uma vez instalado, o Amor Patológico só pode ser rompido com tratamento – psicológico, psiquiátrico ou ambos -, sendo que os grupos de apoio, como o Mada, têm se mostrado também bastante importantes no processo. Cerca de um terço dos pacientes precisa de remédios. Mas a maior parte consegue se equilibrar com terapia – o que não significa cura, mas autocontrole. O problema do Amor Patológico é de diagnóstico. Desde que o amor romântico foi inventado, as loucuras dos apaixonados foram institucionalizadas. Com o tempo, isso passa, é o que se pensa – até que o padrão comece a se repetir. O reconhecimento da doença, sua divulgação e as oportunidades de tratamento são grande passos para se salvar vidas – no sentido figurado e literal.



Fonte: Revista Época. Martha Mendonça é editora-assistente de ÉPOCA no Rio de Janeiro.



Um comentário:

  1. Boa tarde, estou tentando encontrar um contato para informações de como iniciar tratamento pela Santa Casa, tem algum telefone, site ou e-mail?

    Att.

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